A Batalha Invisível na Guerra da Ucrânia

A invasão russa da Ucrânia tem tido frentes de batalha escondidas para muitos usuários de drogas. Fonte: Drop of Light
Enquanto a invasão da Ucrânia pela Russia continua já há mais de dois meses, a TalkingDrugs falou com várias organizações que trabalham na Ucrânia para melhor entender a crise de falta de tratamento e dor que se aproxima, provocada pela súbita falta de acesso estável ao tratamento de substituição de opioides (OST). Todas as organizações contactadas demonstraram uma resiliência fantástica face à adversidade, e como o acesso consistente aos serviços de saúde é realmente a única salvação para muitos.
Pode efetuar doações extremamente necessárias para as organizações entrevistadas através dos links disponíveis no fim do artigo.
A guerra na Ucrânia se tem desenrolado de maneira visceral nos nossos ecrãs pelo mundo inteiro. Embora a violência da guerra se tenha tornado o centro das atenções, uma dor invisível latejante é sentida por alguns dos grupos mais marginalizados da sociedade ucraniana.
Antes da guerra, a Ucrânia tinha cerca de 317.000 pessoas a injetar drogas como a heroína, com quase 15.000 a aceder a tratamentos de substituição de opióides (OST), como a metadona e buprenorfina, através do programa de redução de danos financiado publicamente pelo Governo, em vigor desde 2017. Esse tratamento requer um acesso repetido e consistente à medicação, e que essa seja fornecida em casa ou em clínicas de saúde. Isto garante que as pessoas sejam capazes de gerir o seu consumo e viver uma vida plena. Muitas pessoas em OST também são HIV-positivos ou sofrem de tipos de tuberculose resistentes a tratamento, o que significa que, para muitos, o acesso a um tratamento estável é uma questão de vida ou morte.
A invasão russa significou que, pela primeira vez em mais de meia década, as certezas da vida tornaram-se enormes incógnitas.
A fundação internacional Alliance for Public Health (APH), um dos primeiros parceiros internacionais da Ucrânia no fornecimento de medicamentos e serviços de saúde para o HIV e OST, tem acompanhado e analisado o impacto da guerra na medicação para OST. Estima-se que no final de março de 2022, cerca de 2.100 doentes a seguir um OST não conseguiram receber a sua medicação, com mais de 6.000 a enfrentarem o risco de que os seus tratamentos sejam interrompidos pela falta de medicamentos devido a danos causados pelo combate, pela ocupação russa ou pela falta de abastecimento. O diretor executivo da APH afirmou publicamente que temia que a guerra pudesse apagar anos de melhoria ao nivel da saúde apenas numa questão de dias.
Com a produção de medicamentos afetada pela invasão e o congelamento dos fundos públicos que subsidiaram os OST, pessoas que trabalham no campo da redução de danos tiveram que ser rapidamente transferidas para a ajuda humanitária, ligando as pessoas portadoras de HIV aos serviços de saúde que ainda funcionam, ou direcionando os que estavam no OST para locais que ainda possam ter medicamentos.
Em declarações à TalkingDrugs, Kateryna Gritsaenko, Gestora de Informação da Hope and Trust Foundation, afirmou que a invasão prejudicou rapidamente o acesso ao OST e ao fornecimento de outros medicamentos utilizados para a redução de danos: "Os participantes do programa OST na maioria das cidades da Ucrânia, incluindo Kiev, foram forçados a reduzir a sua dose. Em várias cidades houve uma interrupção na receção de tratamentos de manutenção e substituição."
Kateryna acrescentou que foi decretada a lei marcial para que o Ministério da Saúde pudesse fornecer aos pacientes 30 dias de medicamentos, no entanto os médicos hesitaram a seguir em frente com medo de distribuir demasiado e comprometer a sua disponibilidade para outras pessoas.
Svitlana Moroz, diretora do Club Svitanok, uma ONG que normalmente lidava com trabalhadores sexuais e pessoas que usam drogas, mudou as suas operações para apoiar pessoas vulneráveis ao VIH e ajudá-las a sobreviverem durante a guerra. Svitlanda disse ao TalkingDrugs que não recebem fundos desde fevereiro para pagar os trabalhadores, muitos dos quais tiveram de fugir das suas casas por razões de segurança. As sucursais do Club Svitanok , anteriormente usadas como centros de reabilitação, tornaram-se abrigos improvisados para refugiados, oferecendo apoio humanitário e medicação opióide. Não é claro, no momento em que este artigo foi publicado, se estes fundos foram retomados.
Esperar na fila durante horas para aceder a farmácias tornou-se comum, mesmo sem garantia de que a medicação estivesse disponível. Redirecionar os pacientes para outros locais com reservas OST tornou-se impossível logisticamente: "Em algumas regiões é impossível chegar ao local [OST] devido a bombardeamentos, alguns locais deixaram de funcionar completamente", disse Svitlana Tkalia, uma colega de Kateryna que opera a linha de apoio da Hope and Trust sobre a toxicodependência. Os pacientes devem esperar que os fornecimentos cheguem às farmácias ou aos centros de tratamento, ou comprar drogas aos poucos vendedores de rua, dealers, que restam para evitar sentir a falta (withdrawal).
A ocupação russa significaria provavelmente o fim da medicação OST para os ucranianos em territórios ocupados, como se viu na Crimeia em 2014. A metadona foi descrita como um "tratamento assassino" por funcionários russos que trabalham no controlo de drogas, e o seu uso e distribuição leva a longas penas de prisão.
A Hope and Trust acredita que as pessoas que estejam viciadas em drogas são algumas das mais vulneráveis neste momento na Ucrânia. A guerra pôs em risco o fornecimento seguro de medicamentos a milhares, podendo vir a eliminar todo o progresso conseguido para que esta população vulnerável estivesse em contato com o sistema de saúde ucraniano. Perder esse contato com pessoas vulneráveis no meio de uma guerra pode significar que uma crise humanitária seja agravada por outra.
"Precisamos mesmo de ajuda para [encontrar] os comprimidos para a dor. Não sabemos o que fazer."
No início de março, a TalkingDrugs estava em contacto com Vitalii Lavryk, um ativista pela reforma da política de drogas sediado em Kiev. Vitalii, que vive com a mãe em Kiev e há muito que consume drogas, deu mais alguns detalhes sobre a realidade atual para aqueles que usam drogas na capital. As paragens na conversa eram frequentes, já que muitas vezes saía por várias horas para comprar comida e medicamentos. No início da guerra, a metadona já estava quase sempre indisponível nas farmácias: "A buprenorfina ainda está disponível em certos lugares para os doentes que possam pagar [clínicas pagas privadas] mas é usada apenas por utilizadores de drogas com muito dinheiro."
Na ausência de medicação adequada, Vitalii (como muitos outros) teve de recorrer a outros produtos para a gestão da dor: "Em vez da metadona, os consumidores estão a usar medicamentos farmacêuticos, que agora são difíceis de comprar durante a guerra".
Vitalii comprou Pregabalina (conhecida comercialmente como Lyrica) frequentemente utilizado para a redução de dores. Foto tirada por Vitalii
Iuliia Dorokhova, uma amiga de Vitalii e diretora da Legalife, uma instituição de caridade focada em apoiar trabalhadores sexuais e pessoas que vivem com HIV na Ucrânia, disse ao TalkingDrugs que há muitas pessoas na mesma situação que ele. "Precisamos mesmo de ajuda para [encontrar] comprimidos para a dor. Não sabemos o que fazer."
Atualmente a morar na Geórgia devido à invasão, A Iuliia está a conectar ucranianos em fuga com outras organizações dentro e fora do país para responder às suas necessidades de saúde. Em declarações ao Telegram, Iuliia falou sobre um dos seus contactos, um homem de Kiev que estava a passar por uma crise de abstinência, ou withdrawal, e que, com dores e sem energia, não conseguiu sair do seu apartamento para procurar refúgio nos abrigos anti-bomba. "O que podemos fazer nesta situação?", pergunta.
Iuliia já sabia que as pessoas que usam drogas eram discriminadas antes da guerra, mas desde que as bombas começaram a cair, foram totalmente esquecidas. Para além dos desafios imediatos relacionados com o deslocamento forçado e as necessidades humanas que a invasão criou para tantos, há complexidades adicionais que as pessoas que usam drogas têm de navegar, como racionar os seus medicamentos de OST enquanto encontram outros que ajudem a evitar os efeitos mais debilitantes da withdrawal. Esta negociação é uma preocupação diária até que os fornecimentos sejam restabelecidos, e que se retorne a uma realidade um pouco mais normal.
A resiliência dos ucranianos e o seu sistema de saúde
Parece que a resposta global para ajudar a Ucrânia, em conjunto com a resistência local, conseguiu evitar uma tragédia ainda maior. A (relativa) estabilização em algumas áreas contestadas tem facilitado a distribuição de medicamentos para alguns. Em maio, Kateryna disse ao TalkingDrugs: "O mapa das operações militares mudou. Kiev tornou-se uma região mais calma e começou a aceitar tanto novos pacientes tanto para terapias de substituição como refugiados."
A APH interveio para ajudar na prestação de OST, dirigindo escoltas humanitárias para entregar por todo o país medicamentos adquiridos pelo Ministério da Saúde ucraniano. Cameonetes estão a ser utilizadas para entregar medicamentos para OST a centros de saúde e complementar as ações humanitárias.
No entanto, a situação está a mudar constantemente. Em maio, Olga Belyaeva, Coordenadora do Programa da Rede Euro-Americana de Pessoas Que Usam Drogas (ENPUD), confirmou que a provisão de OST começou a ser retomada pouco a pouco: "Temos medicamentos, não com as doses necessárias, mas temos de sobreviver". Acrescentou que certas clínicas que oferecem OST reabriram em algumas regiões, mas os preços triplicaram: "Muitas vezes passam a receita sem haver obrigação de que os medicamentos existam realmente na farmácia".
Ao longo da guerra se foi revelando o futuro precário para tantas pessoas vulneráveis: o seu acesso à medicina depende de movimentos militares, de preços e cadeias de abastecimento. Todos estes fatores podem mudar de um dia para o outro. Embora a luta para apoiar as pessoas que usam drogas seja apenas uma das facetas desta crise humanitária criada pela invasão russa, a resiliência incansável dos grupos locais que apoiam as suas comunidades é inspiradora.
Muitas das organizações com quem falámos têm lutado para apoiar financeiramente as pessoas com quem trabalham durante a guerra. É provável que isto se transforme numa crise mais profunda nos próximos meses. Por favor, apoie-os, se puder.
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