O Empoderador e Perigoso Trabalho da Redução de Danos no Afeganistão

Idris Azizi conduz uma visita com vista à assistência, em Kabul. Fonte: Bridge Better Hope Health Foundation

 

 

Falando de forma suave, Idris Azizi, relata o episódio no qual lhe foi dito que, como seropositivo, se teria de sentar na bagageira de um carro, com a porta aberta, enquanto viajava para uma reunião do comité do Fundo Global, em Kabul, no Afeganistão. Ambos os médicos do Ministério de Saúde Pública que viajavam com ele se sentaram na cabine do carro.

Em declarações à revista online, Filter, Azizi (presente na fotografia acima, à direita) recorda, “os membros [do comité] não se sentiram confortáveis com a minha presença”. “Quando iam para a reunião de supervisão, não mo diziam. Não partilharam comigo os horários, as refeições ou o carro”, diz-nos Azizi, referindo-se também às ajudas de custo para as despesas associadas às reuniões oficiais. “E a única vez em que partilharam o carro comigo, colocaram-me na bagageira”.

Exibindo uma atitude descontraída, Azizi poderia estar facilmente a falar de um infeliz mal-entendido. Mas Azizi trata-se de um porta-voz oficial da PLHIV, ou People Living With HIV, e pagou uma bolsa mensal de 10,160 AFN (o que equivale a 129 $) através do Fundo Global do Afeganistão. Azizi fala em nome dos afegãos que não se sentem seguros em revelar que são seropositivos.

O Fundo Global, estabelecido pelas Nações Unidas, descreve-se como uma organização dedicada à luta contra a sida, a tuberculose, bem como a malária, doenças estas, todas presentes no Afeganistão. De modo a garantir que aqueles diretamente afetados por ditas doenças podem ter a oportunidade de determinar a forma como são utilizados os recursos dentro do seu país, o Fundo criou a CCM, ou Country Coordinating Mechanism, com um comité com a função de supervisão, constituído por membros da comunidade, como é o caso de Azizi, bem como por especialistas técnicos, como os médicos que o rejeitaram.

O Afeganistão lida com insegurança, guerra, pobreza bem como com uma das taxas de desemprego mais altas do mundo. Num país onde a colheita de papoila está na base de mais de noventa por cento da heroína ilícita do mundo, apesar dos vãos esforços norte-americanos em evitar dita situação, os opiáceos forneceram conforto a populações afetadas por traumas mentais ou problemas de saúde físicos. As pessoas recorrem ao consumo destas de modo a lidar com o stress e a dor física.  Mas o consumo vivível pode levar a que o individuo seja ostracizado da sociedade.

Lyla Schwartz, uma psicóloga e diretora de programação da Peace of Mind of Afghanistan (PoMA), uma organização dedicada à desestigmatização de problemas dos foro da saúde mental no contexto do Afeganistão, diz-nos, “A minha experiencia diz-me que a exposição prolongada [à violência], instabilidade e a falta de segurança leva a que as pessoas procurem outros mecanismos para lidar com a situação, de modo a sobreviver [incluindo opiáceos]”. “A nível cultural, quando a comunidade ou família se inteiram da situação, torna-se um fator de exclusão, que leva a que o indivíduo seja ‘excluído desse mesmo sistema.”

Azizi começou a fumar opiáceos aquando a sua estadia no Irão como trabalhador migrante. Quando, tanto ele ele como os seus amigos, começaram a injetar, fizeram-no pois “não tínhamos o suficiente entre todos nós, e a injeção apresentou-se como a solução económica”. Para obter o mesmo efeito produzido pela injeção de zero ponto cinco gramas de opiáceos, uma pessoa terá de fumar cinco gramas de opiáceos. No entanto, a injeção acarreta perigos adicionais para a saúde.

Azizi diz-nos, “Não sabíamos que o HIV era uma consequência de partilhar agulhas”.

Segundo dados do Fundo Global, a taxa de HIV na população geral do Afeganistão estima-se estar nos zero ponto zero cinco por cento. As taxas mais altas podem ser encontradas entre consumidores de drogas que escolhem injetar o produto, estimando-se que esteja nos quatro ponto quatro por cento, bem como entre os indivíduos apelidados de “homens e mulheres com comportamentos de alto risco”, comportamentos estes que incluem aqueles do foro sexual.

O tratamento antirretroviral tornou-se disponível no Afeganistão em Abril de 2009. O primeiro grupo de tratamento de metadona teve o seu início em 2008. Presente nesse mesmo grupo, estava Azizi, que afirma que a redução de danos salvou a sua vida.

Atualmente, Azizi tem uma esposa e um filho de cinco anos. Trabalha como um educador de pares em Kabul, um trabalho que adora. Como um propulsor de redução de danos, o mesmo pode agora educar outros sobre a importância de agulhas limpas. Mas o estigma que enfrentou por parte dos profissionais de saúde revela a dura realidade sobre os obstáculos à redução de danos presentes no seu país.

 

Exclusão da Comunidade de Saúde Pública

 

Raheem Rejaey, também participante no primeiro grupo de tratamento de metadona – um projeto piloto facilitado a setenta e um participantes pela organização, Médecins du Monde, ou MdM. Na verdade, Rejaey foi o primeiro participante.

Atualmente, é um representante da sociedade civil no CCM. Em 2015, fundou a Bridge Better Hope Health Organization, uma ONG registada com o Ministério da Economia. Tendo sido iniciada em Kabul como um programa com base em voluntariado, a organização Bridge recebeu o seu primeiro financiamento internacional com vista a facilitar formação a um grupo de educadores de pares, no qual se inclui Azizi, em cuidados de primeiros socorros, apoio de direitos humanos e de como ajudar os consumidores de droga afegãos a ter acesso a redução de danos.

O trabalho de Rejaey no âmbito da redução de danos foi a concretização de um sonho, tendo o mesmo tido de lidar com problemas como o desalojamento e o consumo problemático de narcóticos. Em declarações à Filter, Rejaey diz, “Fiquei saudável devido à MdM, por isso quis usar a minha vida para ajudar os outros”.

No entanto, apesar do seu impressionante currículo, mesmo tendo trabalhado em redução de danos desde 2008, Rejaey, afirma ter sido “banido” como membro da CCM- por ter falado contra os médicos que forçaram Azizi a se sentar na bagageira de um carro.

No seguimento de comunicações com a liderança de Fundo Global, foram emitidas desculpas em privado, e tanto Rejaey e Azizi foram convidados a participar nas reuniões deste ano. Os dois médicos envolvidos foram removidos do comité de supervisão. Mas as mudanças têm sido lentas.

 

Trabalho entre Pares e Apoio Psicossocial

 

Os obstáculos enfrentados por aqueles que trabalham na redução de danos no Afeganistão são numerosos. No entanto, o fornecimento de naloxona tem vindo a exercer uma força positiva para a comunidade. Caso consumam de novo, aqueles sujeitos a uma desintoxicação bem como à abstinência de heroína, têm um rico mais elevado de overdose. A naloxona te a capacidade de contrariar isso.   

Segundo Rejaey, “Assistíamos a overdoses e a mortes de pessoas acabadas de sair de um processo de desintoxicação, pois apesar de tomarem a mesma dose, o seu corpo já não conseguia lidar com a mesma”.

Anteriormente, a naloxona não estava disponível à Bridge, e as ONGs com acesso à mesma não levavam a cabo visitas de assistência a pessoas em acampamentos de sem abrigo.

Rejaey explica-nos, “  Não vão a pontes [em Kabul, é debaixo destas em que muitas pessoas sem abrigo vivem] para ajudar pessoas. Uma pessoa com uma overdose não tem a capacidade de ir a [uma ONG]”.

Ata Hamid, coordenadora de projeto da Bridge diz-nos, “A naloxona permitiu-nos salvar mais de cinquenta vidas (…) mas antes pessoas morreram”.

Aqueles que trabalham na educação de pares estão altamente conscientes dos perigos inerentes à desintoxicação; a maioria encontrou na metadona a única forma de se libertarem do vicio. No entanto, fazer parte de uma comunidade e encontrar um propósito desempenhou, da mesma forma, um papel importante.

A organização Bridge oferece um jardim comunitário para os que trabalham na educação de pares, nos quais se pode cultivar cenouras, pimentos, beringelas, batatas, menta, rabanetes, cebolas, pepinos, peras e rosas. O pequeno complexo oferece uma forma de conforto alternativo aos serviços formais psicossociais. Referindo-se ao jardim, Rejaey diz-nos, “Não temos psicólogos, mas temos canários no complexo”.

 

Raheem Rejaey administrando tratamento a feridas em Kabul. Fotografia é cortesia da Bridge Better Hope Health Organization.

 

Schwartz da Peace of Mind Afghanistan defende que a reconstrução de um sentimento de comunidade aliado ao patrocínio é parte da receita para o sucesso dos grupos de autoajuda. Em declarações à Filter, esta enfatiza “Não posso expressar o quanto isso faz a diferença (…) [Igualmente] dar um propósito, facilitar a formação de qualificações e oportunidades de trabalho” pode auxiliar no processo de recuperação.

Segundo Hamid, “Educadores de pares gostam de trabalhar para a Bridge porque temos confiança que eles irão cumprir com o seu trabalho (…) Digo-lhes que atingir os nossos objetivos de alcance comunitário trata-se da parte mais importante do nosso trabalho”, o que significa fornecer serviços a consumidores de drogas presentes na nossa comunidade.

Durante o arranque da nossa organização em 2016, os educadores de pares foram treinados sobre como conduzir visitas de assistência, como educar consumidores de narcóticos no que diz respeito a métodos de redução de danos, gestão de overdose, e a administrar tratamento a feridas bem como serviços de primeiros socorros. Madawa, uma organização focada na redução de danos, formou educadores de pares em ativismo. Já Mat Southwell e Buff Cameron, ambos conselheiros técnicos da CoAct, forneceram treino na gestão de overdoses e consciencialização de segurança. 

A Bridge tem recebido apoio de micro subsídios de dores como é o caso de organizações como Madawa e UNDP. Apesar do financiamento limitado, a liderança constituída por antigos e presentes consumidores de drogas e os seus educadores de pares reconhecem a importância que o seu trabalho acarreta.

Segundo Hamid e Rejaey, no seu primeiro ano, os educadores de pares da Bridge “mapearam” mil novecentos e sessenta e nove consumidores de drogas em Kabul (mil oitocentos e trinta e cinco do sexo masculino), mil e oitocentos e noventa e cinco dos quais foram identificados como sem abrigo. A Bridge serviu mais de dois mil consumidores de drogas, tendo administrado cuidados a feridas a mais de mil duzentas e cinquenta pessoa.

Subsídios de apoio a “mulheres com comportamentos de alto risco” permitiram que em 2017, a Bridge iniciasse o seu trabalho com mulheres. As suas trabalhadoras de assistência treinadas, forneceram, até agora, serviços de redução de danos a mil quinhentas e setenta e três mulheres, bem como serviços de análises a outras mil trezentas e setenta e três mulheres.

De momento, a Bridge tem ao seu serviço cinco assistentes sociais e oito trabalhadores de pares. Estes têm ao seu dispor uma carrinha utlizada nas visitas de assistência, viajando sempre acompanhados por razões de segurança. Segundo Rejaey, “É preferencial que trabalhem duas ou três pessoas juntas, sempre com a suas respetivas identificações (…). Ditos cuidados têm uma boa razão.

Uma vez, Azizi visitou uma comunidade sozinho e foi espancado pela polícia. Segundo o próprio, “A polícia começou a bater-me – primeiro um agente, depois outro- tendo sido, depois, levado para a esquadra”. Hamid teve de o ir buscar e explicar que Azizi se tratava de um trabalhador de assistência.

Mas os perigos inerentes a este trabalho podem ser ainda mais graves. Naser, um dos trabalhadores na educação de pares, tinha sempre um sorriso no rosto quando visitava o complexo.

 

Naser Khalile. Fotografia cortesia da Bridge Better Hope Health Organization.

 

No dia vinte e oito de Agosto, Khalile foi assassinado por ladrões que pretendiam a sua moto, enquanto o mesmo se deslocava para casa após o seu trabalho. Apesar de ter estado em segurança com os seus colegas durante o dia, todos os afegãos enfrentam graves riscos de segurança apenas por salvar vidas.

 

Trabalhadores na educação de pares da Bridge seguram nos seus certificados de conclusão de treino com o staff em 2016, incluindo Naser Khalile (de joelhos, vestido de branco) e Raheem Rejaey (de pé, no centro, com as mãos cruzadas). Fotografia da autoria de Michelle Tolson.

 

A Luta pelo Acesso a Cuidados de Saúde

 

Ainda que a terapia antirretroviral reduza a presença do vírus no sangue bem como o risco de transmissão, aqueles seropositivos enfrentam obstáculos significantes no que diz respeito a cuidados de saúde. Tal está na base de uma das razões pelas quais a advocacia é tão importante. As pessoas que padecem de hepatite podem ser, do mesmo, bloqueadas de receber tratamento médico. Um amigo de Azizi morreu de apendicite em 2016, após lhe ter sido recusada a operação pelos médicos, após terem descoberto que este era seropositivo.

Em Outubro, durante a primeira formação de educadores de pares da Bridge, um dos formandos, um consumidor de narcóticos afegão, sem abrigo, de nome Haji, que conseguiu participar em quase todas as sessões de treino, não conseguiu obter cuidados de saúde para salvar a sua vida.

Reportei sobre a formação e conheci o Haji, que, por vezes, adormecia durante as aulas (um referido efeito secundário da metadona, que o mesmo estava a tomar). Um dia, Haji deixou de comparecer ao curso.

Rejaey terá sabido por outros educadores de pares que Haji sofria de apendicite. Encontraram-no doente debaixo da ponte Pul-e-Sokhta na parte ocidental de Kabul, notório por ser um local onde consumidores sem abrigo se congregam e vivem. Haji expressou medo intenso que iria morrer; estava ciente que os médicos lhe recusariam tratamento, sendo o mesmo seropositivo. Rejaey procurou a ajuda de uma pessoa influente no Ministério de Saúde Pública, que ligou para a clínica para onde Haji foi levado, e ordenou que este fosse operado.

Na manhã seguinte, outros educadores de pares revelaram que que o corpo de Haji foi encontrado debaixo da ponte Pul-e-Sokhta. Rejaey e a sua equipa especulam que a clínica terá levado Haji para a ponte, onde o mesmo terá morrido.

Segundo Rejaey, “estava-lhe a ser administrado um tratamento antirretroviral, por isso a contagem viral no seu corpo estaria baixa, mas mesmo assim foi-lhe recusado tratamento”. Apoiantes da Bridge fizeram um vídeo controverso com imagens gráficas de outros deixados para morrer debaixo da ponte, de modo a chamar à atenção para estas mortes sem sentido.

Em Outubro de 2018, Rejaey, que tem hepatite, também contraiu apendicite. No entanto, os seus amigos conseguiram que este recebesse tratamento numa clínica privada em Kabul. O médico afegão que o operou, que falou à comunicação social sobre este assunto, recorreu a equipamento cirúrgico descartável e batas concebidas para o tratamento de pacientes com hepatite ou HIV.

Naweed Hamkar, um jovem médico afegão que tem vindo a trabalhar com hospitais do Governo, em Kabul e Ghazni, concorda que o equipamento descartável é uma opção, caso esteja disponível, mas pensa que os fatores mais importantes estão na falta de recursos e preocupações associadas à responsabilidade dos médicos.

“A razão pela qual a maioria dos médicos não quer operar seropositivos, ou indivíduos que padecem de hepatite e HCV passa pela falta de materiais [adequados] no bloco operatório” - diz-nos Hamkar, citando proteção para os olhos e outros materiais descartáveis. O mesmo teve de recorrer aos seus próprios óculos para proteger os seus olhos. Em declarações à Filter, este afirmou que os hospitais do Governo não têm os recursos para adquirir dito material para estes pacientes, nem tão pouco têm os pacientes pobres. Os hospitais privados têm, como foi o caso do Raheem, mas tem de ser o paciente a pagar.

Outra preocupação de relevo passa pela proteção de outros pacientes de potenciais infeções, quando a responsabilidade recai sobre o médico. Segundo Hamkar, “O salário de um médico no Afeganistão durante a sua residência não chega aos 100$ [por mês] (…) por isso, primeiramente, o médico não quer arriscar a sua carreira, e em segundo lugar, no Afeganistão os médicos não têm seguro. Não existe nenhuma apólice de seguro, por isso tanto os médicos como as clínicas preferem não [correr] o risco”.

O turismo médico é comum para aqueles com a capacidade financeira de sair do país, como as famílias que viajam até ao Paquistão ou à India de modo a procurar tratamento para os seus familiares. Mas a população cujos interesses são defendidos pela Bridge não têm esse tipo de opções.

A severidade de todos estes desafios está na base do que torna o trabalho da equipa da Bridge tão essencial. Estes continuam a inspirar todos com quem entram em contacto, e os seus esforços não têm passado despercebidos. Recentemente, a Harm Reduction International reconheceu Rejaey com prémio Carol and Travis Jenkins, pelo seu excelente trabalho.

 

Raheem Rejaey no arranque da Bridge. Fotografia da autoria de Michelle Tolson.

 

Este artigo foi originalmente publicado pela Filter, uma revista online cuja cobertura se centra no consumo de narcóticos, politica de drogas e direitos humanos vistos pelo prisma da redução de danos. Siga a Filter no Facebook, ou Twitter, ou inscreva-se para a sua newsletter.

*Michelle Tolson é uma escritora baseada em Kabul, no Afeganistão. Esta já escreveu para a comunicação social assim como para organizações sem fins lucrativos, companhias com fins lucrativos, para Agências das Nações Unidas e projetos da USAID.