O Imperialismo Patente na Guerra contra as Drogas

O presidente boliviano, Evo Morales, usando um colar feito de flores e folhas de coca, ergue o seu punho após a sua reeleição como líder das Seis Federações do Trópico de Cochabamba, posto que detém desde 1988, em Cochabamba, Bolívia, a catorze de Fevereiro de 2006. Fonte: Jorge Uzon

 

Em Agosto de 1978, guerrilheiros da Frente Sandinista da Liberação Nacional invadiram o Palácio Nacional em Nicarágua. Até este ponto, a nação da Nicarágua seria uma “república das bananas” – um dos países de terceiro mundo na América Latina sob as alçadas das juntas de direita e corporações norte-americanas – governada somente pelo poderoso clã Somoza. No ano seguinte, o presidente Somoza fugiu do país.

Os Estados Unidos, por sua vez, foram proeminentes durante a chamada crack era. Sentenças mais pesadas, policias prontos a disparar, bem como a prisão de seres humanos a uma escala industrial, por crimes não violentos, afetaram largamente a comunidade afro-americana. Não se trata de uma coincidência que a cocaína em pó era preferida por indivíduos brancos endinheirados, enquanto o crack estaria mais amplamente disponível às comunidades da classe trabalhadora afro-americanas. Apesar, de na altura, a Guerra contra as Droga já estar em plena força há algum tempo, o crack era uma forma de cocaína passível a ser fumada, cujo efeito seria muito mais intenso (e viciantes). Como resposta, Ronald Reagan intensificou a repressão, e a determinado ponto procedeu ao bloqueio da toda costa marítima do estado da Flórida, após ter visto demasiados episódios de Miami Vice.

Em Julho de 1984, foram divulgadas fotografias de oficiais de Sandinistas a carregarem um avião de cocaína. Reagan condenou a ação na televisão – haveria algum crime que aqueles malditos comunistas não cometessem? Esta situação foi como ganhar um jackpot para Ronnie  – uma junção da Guerra contra as Drogas e a Guerra Fria. A situação em Cuba era má o suficiente. Ter outra pata soviética no Hemisfério Ocidental era algo que simplesmente não podia permitir.

A cocaína, a cannabis e a heroína nem sempre foram ilegais. Na realidade, a um certo ponto, a cocaína era usada para acalmar bebés. Ainda que toda a gente concorde que provavelmente não foi boa ideia, a Guerra contra as Drogas como a conhecemos está inerentemente ligada ao racismo, imperialismo, e xenofobia nos Estados Unidos.

Após a Guerra Espanhola-Americana, em 1898, os Estados Unidos ficaram com os domínios anteriormente detidos pela coroa espanhola em Cuba, Porto Rico e nas Filipinas. Depois, em 1905, missionários em Manila encabeçaram uma campanha antiópio, uma forma pouco subtil de tentar expulsar os imigrantes chineses (os covis de ópio já teriam sido banido em partes dos EUA, algo que não resultou de uma preocupação com a saúde pública, ou de investigação clínica , mas sim da difusão de medo com base em racismo direcionado à comunidade chinesa). A Proibição, o período sem álcool entre as décadas de vinte e de trinta, foi fomentada pelo jingoísmo da era da I Guerra Mundial contra alemães (bem como aos italianos e irlandeses). Mais tarde, no meio do intitulado Medo Vermelho da década de cinquenta, o chefe da Federal Bureau of Narcotics, Harry Anslinger, argumentou que o dinheiro oriundo da droga estava a financiar a China Comunista. Falamos de claras fake news. No entanto não seria a última vez que os EUA tentariam utilizar a sua cruzada antidrogas como um meio para atingir os seus objetivos geopolíticos.

Travar uma guerra contra objetos inanimados implicou a criação da Drug Enforcement Administration, ou o DEA, concedendo-lhe jurisdição para operar no estrangeiro. Existem outposts do DEA em Bogotá, Cabul, Cidade do México, Banguecoque e por todo o mundo. Em qualquer parte do globo na qual existam drogas, os corajosos agentes do DEA estarão lá para as confiscar.

Ainda que a União Soviética também tenha proibido narcóticos, considerou que o assunto relativo a quem fuma determinado pó devia ser uma decisão deixada para cada nação. Os esforços de Anslinger nas Nações Unidas, por outro lado, permitiram que os EUA forçassem todos os outros países a embarcar na sua Guerra contra as Drogas, usando sanções como forma de coação, caso se recusassem a aceder. Consequentemente, países mais pobres como a Jamaica, onde fumar ganja constitui uma parte da sua herança cultural, ficaram com poucas opções.

Não obstante, foi na América Latina que se sentiu o maior impacto do papel de polícia do resto do mundo ao qual os EUA se autopropuseram. A cocaína vem da planta de coca, que cresce nos Andes da América do Sul. Coca não é cocaína. Mate de coca, ou chá de coca trata-se de um chá como qualquer outro, exceto no facto do seu sabor se assemelhar ao da Coca-cola e pelo facto de ajudar com sintomas de doença de altitude. Os nativos da Bolívia e do Peru, para os quais mastigar coca se trata de uma tradição milenar, foram, de um momento para o outro, proibidos de o fazer. Imaginemos que é imposta uma proibição ao consumo de cerveja por alemães e belgas. Adeus, Oktoberfest.

Programas anti-coca não são bem recebidos nestes locais. Em 1982, após a polícia antinarcóticos ter atacado a mulher e filha de um agricultor de coca na província de Yungas, na Bolívia, uma multidão indignada concentrou-se na esquadra da polícia , destruiu o local e castrou e massacrou os agentes no seu interior. Os restantes polícias de drogas não se atreveram a visitar a área nos subsequentes cinco anos. Em 1986, a atenção virou-se para o DEA, tendo sido os seus agentes confrontados por multidões com forquilhas e machetes na mão. Foi apenas em 2008, já sob o governo do presidente Evo Morales, que, desafiadoramente, mastigou um saco de folhas de coca nas Nações Unidas, que a Bolívia expulsou o DEA e legalizou a coca.

Tal não significou o fim das aventuras da agência burocrática em outros países. Caso consigam argumentar que existe a mais pequena probabilidade de o pó poder acabar no nariz do pequeno Timmy nos EUA, o DEA tem autorização para perturbar o fluxo de narcóticos, quer na fonte quer nos países em que circulam. Em 2009, uma operação conjunta foi levada a cabo pelas autoridades dos EUA e da Libéria, na África Ocidental, na sequência de ter sido oferecido, ao chefe de segurança nacional do país, Fombah Sirleaf, um acordo pelos traficantes colombianos e nigerianos, no qual lhe foi pedido para circular o produto no seu país. Fombah organizou assim uma operação com o DEA. Um nigeriano, Chigbo Umeh, foi detido, bem como um piloto russo, Konstantin Yaroshenko, mesmo não havendo quaisquer indícios de que os mesmos pretendiam levar a cocaína para os EUA. Não obstante, os dois homens estão agora a definhar numa cela norte-americana, a milhares de quilómetros das suas casas, por um alegado crime, que em nada estava relacionado com o sistema criminal dos EUA.

O DEA viu mesmo o desmantelamento das suas forças especiais próprias, Foreign-developed Advisory and Support Teams, ou FAST, em 2017, após um vídeo ter emergido, no qual os seus agentes participam num massacre de aldeões inocentes nas Honduras. Imagine polícias das Honduras a virem ao nosso país alvejar soccer moms inocentes à porta de um Walmart.

Apesar do seu papel de liderança na Guerra contra as Drogas, os EUA têm, em simultâneo, trabalhado lado a lado com traficantes de droga. Ao mesmo tempo que Reagan condenava os Sandinistas, foi dada permissão aos Contras, rebeldes anticomunistas a lutar contra os Sandinistas, que inundassem os EUA de cocaína, pela CIA. Em meados da década de oitenta, o Congresso recusou-se a financiar o que era essencialmente um brutal grupo terrorista. Foi então que surgiu a ideia ao Tenente Coronel, Oliver North, de vender armas ilegalmente ao Irão e mandar os lucros resultantes aos Contras, bem como de permitir aos Contras o contrabando de cocaína, que foi transformada em crack e vendida nas partes mais desfavorecidas das cidades. Poderemos nunca saber a amplitude do esquema, porque North destruiu os documentos. No entanto, achamos mesmo que a agência poderia ter ajudado a estabelecer uma guerra secreta na América Latina sem o conhecimento do presidente Reagan? No fim de contas, claro, todos os envolvidos receberam imunidade quando o escândalo veio à luz do dia.

Na Colômbia, o negócio da cocaína de Pablo Escobar foi herdado pelos grupos paramilitares de extrema direita, responsáveis pela maioria das mortes resultantes da guerra civil do país. Durante anos, Washington ignorou os abusos perpetrados por ditos grupos, pois esses senhores de guerra estavam “do nosso lado”, dando apoio ao exército colombiano contra os rebeldes de esquerda, apoiando, efectivamente, os grupos paramilitares. O chamado Plan Colombia resultou no envio de biliões de dólares em ajuda humanitária e aviões Black Hawk, enquanto a CIA fornecia inteligência e bombas guiadas por laser, na tentativa de assassinar o comandante dos rebeldes no Equador.

No Afeganistão, os senhores de guerra responsáveis pela venda de heroína eram na realidade activos da CIA. Juma Khan estava proximamente ligado aos Taliban, ao Governo afegão e à Inteligência paquistanesa, mas era financiado pela CIA e o DEA, devido à sua ajuda prestada na luta contra os Taliban, tendo-lhe sido mesmo oferecida uma viagem a Washington e Nova Iorque – tudo à custa dos impostos pagos pela população norte-americana. Em 2008 o mesmo foi apreendido por agente norte-americanos em Jacarta e levado para uma prisão americana. No entanto, o seu caso nunca foi julgado, e foi libertado, discretamente, dez anos mais tarde, sem qualquer menção por parte da mainstream media.

Quem são, então, os vencedores nesta situação? Não será a CIA, que mesmo com todo o seu financiamento de narco-terroristas, acabou por perder a guerra na Nicarágua. Também não terão sido os contribuinte americanos que deram mais de trinta mil dólares por ano, apenas para manter um piloto russo abandonado, alimentado, lavado e preso numa prisão, para não falar de um número de afro-americanos escravizados mais elevado que àquele vigente em 1850.

Se pensarmos bem no assunto, é algo bizarro: como é que o pânico moral de um país relativamente ao hábito de outros pode tornar-se numa ferramenta para o domínio mundial, ditando o que é certo e errado, violando, ao mesmo tempo, essas mesmas regras, a partir do momento em que não lhes são convenientes. Mas esta é a nossa realidade. E não se trata de um problema somente dos EUA, claro – nos recentes anos, a China tem vindo a desempenhar o mesmo papel nas selvas do Sudeste Asiático – apenas aprenderam com o melhor.

É possível argumentar que toda o empreendimento terá valido a pena, no caso de ter conseguido poupar o seu filho aos efeitos dos narcóticos. No entanto, a marijuana, a cocaína e a heroína são mais puras e mais baratas do que alguma vez foram, e tanto a política norte-americana de narcóticos, como a global, continuam a falhar miseravelmente a materializar o seu objetivo de um mundo sem droga.

 

Niki Vorobyov é um traficante de droga certificado pelo governo (condenado), presentemente escritor e autor do livro, Dopeworld, centrado no comércio internacional de narcóticos. Pode segui-lo em @Lemmiwinks_III.