PNUD–Brasil Apoia Abstinência e Patologização Religiosa de Pessoas Que Usam Drogas

Emblema das Nações Unidas. Fonte: Wikipedia

O Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento (PNUD) do Brasil está dando passos largos em seu processo de alinhamento ideológico com o gabinete de Jair Bolsonaro. Comentei anteriormente, aqui na TalkingDrugs, que o apoio do governo brasileiro a instituições de reabilitação de caráter religioso é parte de uma política de drogas que prioriza a abstinência em vez da redução de danos e que prefere a guerra às as drogas em vez de descriminalização e a regulamentação. Também comentei sobre a aliança moral e institucional do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e do PNUD com a guerra às drogas de Bolsonaro e os perigos dessa parceria infeliz. Agora, num edital lançado em 21 de dezembro de 2020 com prazo de inscrições até 3 de fevereiro de 2021, a agência da ONU e o Ministério da Cidadania convidaram instituições de pesquisa a apresentarem projetos para a realização de um estudo sobre os benefícios da religião , espiritualidade e fé para o tratamento de pessoas que usam drogas. A proposta vencedora será financiada com R$ 570 mil (£ 71 mil). 

Os termos de referência do edital sugerem a existência de uma epidemia do uso de drogas no Brasil, hipótese corrente no senso comum já refutada por um estudo da FIOCRUZ previamente censurado durante o governo do ex-presidente Michel Temer. O apoio institucional e financeiro do PNUD a esta iniciativa é um aceno de aprovação não apenas para a ala religiosa do governo, mas para a Bancada Evangélica como um todo. A linguagem do edital é repleta de termos estigmatizantes. Na seção de justificativas, um único parágrafo contém a palavra “abuso” três vezes. Do início ao fim do documento não há sequer uma menção ao termo “redução de danos”. O uso de drogas é traduzido como “dependência química”, e caracterizado como uma doença mental. Os autores do texto elogiam aquilo que entendem como benefícios da religião para “prevenção, diagnóstico, tratamento e prognóstico da dependência química”, e citam um estudo metodologicamente duvidoso para afirmar que “indivíduos de base religiosa / espiritual usam menos drogas”. Esse elogio à espiritualidade e à religião tem um público claro: os donos de comunidades terapêuticas contratadas pelo governo para oferecer tratamento—isto é; trabalho forçado, castigo físico e psicológico—para pessoas que usam drogas.

 

Promoção de Danos em Nome de Deus

 

A história dos usos e imposições de fé e religião no tratamento de pessoas que usam drogas é longa, assim como é longa a história do enquadramento do uso de drogas na categoria de pecado moral. Em meados do século XIX, no contexto das Guerras do Ópio, médicos missionários britânicos consideravam “o cristianismo sua erva mais valiosa no tratamento” dos usuários do ópio. Eles “decidiram que a cura definitiva para o vício em drogas estava” no indivíduo. Presumiam que o povo chinês, sendo 'pagão', "carecia de fibra moral e que o cristianismo teria de ser incutido em cada paciente antes que ele tivesse a força de caráter para se reformar”. Acadêmicos e o jornalistas, entretanto, nos mostram que muitas das pessoas internadas em programas de reabilitação de orientação religiosa escapam destas organizações na primeira oportunidade que encontram, seja no Brasil, no Reino Unido ou nos Estados Unidos.

 

Clarissa Levy denunciou, em matéria para a Agência Pública, os abusos físicos e psicológicos sofridos por adolescentes internados em uma comunidade terapêutica em Minas Gerais. Nesta foto de Vitor Shimomura, um interno mostra uma vassoura quebrada que é usada para castigar os meninos. O jovem disse a Levy que a vassoura permanecia em um dos quartos como um lembrete de que os internos poderiam ser punidos fisicamente caso quebrassem qualquer regra. Fonte: Agência Publica / Autor: Vitor Shimomura.

 

As violências física e simbólica são inerentes aos processos de patologização religiosa de pessoas que usam drogas, e o histórico de violência contra estas pessoas nas comunidades terapêuticas brasileiras deveria ser motivo de preocupação para as agências da ONU que têm parceria com o governo brasileiro. Especialmente no contexto atual em que a internação involuntária foi legalizada novamente por Bolsonaro. Em julho de 2020, inclusive, o governo autorizou o a internação involuntária de crianças a partir dos 12 anos.

O relatório do International Narcotics Control Board para 2020, aliás, desaprova a política do Bolsonaro de internar pessoas que usam drogas “sem o consentimento do paciente, a pedido de um familiar ou responsável legal ou, na ausência absoluta de um tutor, de um servidor da área da saúde que verifique a existência de motivos que justifiquem a medida”. Mas embora o Conselho “desestimule o uso de tratamento obrigatório para a reabilitação de pacientes que sofrem de transtornos por uso de drogas”, a linguagem do relatório também enquadra o uso de drogas como uma patologia. Surpreendentemente, o Conselho parece não se preocupar com o fato de que as instituições de reabilitação brasileiras não estejam sujeitas a prestação de contas; nenhuma agência as supervisiona.

Ao atuar em parceria com o Ministério da Cidadania, um baluarte do bolsonarismo, o PNUD está ajudando a legitimar a guerra às drogas e a violência contra pessoas vulneráveis no Brasil, o que vai de encontro à suposta missão da ONU de apoiar os direitos humanos ao redor do Globo.

 

*Felipe Neis Araujo é um antropólogo brasileiro cujos interesses de pesquisa incluem políticas de drogas, violência estatal, racismo estrutural e reparações por desigualdades históricas. Ele escreve um artigo mensal para TalkingDrugs. Você pode contatá-lo via email em  neis.araujo@gmail.com e segui-lo no Twitter @legaliseNrepair.