Política de Drogas, Policiamento e a Monetização da Violência Estatal

O gênero televisivo de reality show policialesco retrata a sociedade como uma turba em potencial e os policiais como guerreiros que arriscam suas vidas cotidianamente para manter a ordem. Fonte: captura de tela do YouTube.

No ano passado, logo depois que o ex-policial branco de Minneapolis Derek Chauvin assassinou George Floyd, um cidadão negro, o reality show americano Cops foi cancelado. Ao ler sobre o assunto confesso que senti, pelo menos por alguns momentos, que tínhamos chegado ao fim de uma era. Suspendi a desconfiança costumeira e pensei “bem, os anos de propaganda policial em horário nobre acabaram. As empresas de comunicação estão começando a perceber que esse tipo de programa promove e tolera a violência espetacularizada contra os cidadãos. Estamos realmente vivendo na era do corte de fundos e da abolição da polícia”. Meu otimismo não durou muito, no entanto. Embora Cops fosse um símbolo importante do gênero reality show policial, sua interrupção não gerou uma sequência de cancelamentos como eu esperava. Em vez disso, alguns meses após o anúncio de sua interrupção, novos episódios já estavam sendo filmados. A Fox, empresa americana de multimídia, ressuscitou o programa e agora está o disponibiliza em sua plataforma de streaming. Eles estão até oferecendo um ano de assinatura gratuita a policiais.

Poucos dias depois de me mudar para o Reino Unido, em outubro de 2020, eu estava passando os canais na televisão quando minha atenção foi atraída por uma daquelas cena terríveis e clichê na tela. Um carro segue por uma rodovia. A câmera aérea segue o veículo que passa em frente uma viatura estrategicamente estacionada em um acostamento. Com auxílio da tecnologia invasiva de leitura automática de placas, os policiais na viatura identificam um suspeito. Eles ligam as sirenes e saem atrás do veículo suspeito. Essas são cenas de Traffic Cops, um programa britânico de propaganda policial exibido desde 2003, primeiro na BBC One e atualmente no Channel 5. Como se pode constatar, o gênero televisivo do policial-como-salvador-da-sociedade ainda está vivo e prosperando dos dois lados do Atlântico.

Guerra às Drogas e a Monetização da Violência Policial à Brasileira

Recentemente o delegado Da Cunha foi afastado do cargo após encenar, gravar e publicar uma série de operações policiais simuladas retratando a si mesmo como um soldado da guerra às drogas a la Rambo. Fonte: Canal do YouTube do Delegado Da Cunha.

 

No Brasil há uma longa tradição de jornalismo investigativo sensacionalista; programas nos quais a rotina policial é a principal atração. Esses programas são transmitidos durante os horários de almoço e jantar, horários típicos em que os brasileiros assistem à televisão. Os aparelhos de TV são itens obrigatórios em cozinhas e restaurantes brasileiros. Entre colheradas de comida, as crianças podem assistir cadáveres no chão, sangue escorrendo, homens sem camisa algemados e presos por portar alguns gramas de cocaína, policiais apontando espingardas para pessoas e outras cenas de violência e desespero. Toda essa violência e propaganda policial atraem telespectadores e uma grande audiência, por sua vez, atrai investidores. Alguns apresentadores e programas têm dezenas de patrocinadores, um fato que realmente conta uma história sobre como a brutalidade policial e problemas social são negócios lucrativos não apenas para a indústria de armas, donos de presídios privados e governos. 

O fascínio pelas operações policiais televisionadas é tão difundido no Brasil que não surpreende quando um policial percebe que pode monetizar sua rotina de trabalho—e que pode até mesmo realizar operações de faz de conta para encher os bolsos. Usando seu uniforme da polícia civil do estado de São Paulo, armas do estado e colete à prova de balas estilizado com o logotipo do Justiceiro, o delegado Da Cunha criou um personagem que leva seus seguidores às cenas de crime onde ele enfrenta supostos traficantes de drogas, líderes de facções criminosas e outros bandidos procurados. Da Cunha investiu pesado em seus reality shows. Ele contratou um cinegrafista para capturar e editar as filmagens. Conduziu uma operação onde atuou como um exército de um homem na infame Cracolândia. E também simulou a prisão de um famoso criminoso procurado.

Da Cunha tem milhões de seguidores em seu canal no YouTube, muitos dos quais demonstram apoio e apreço pelo que entendem ser a contribuição do policial para a erradicação do crime. Os chamados criminosos nas histórias de Da Cunha, no entanto, são moradores de rua que usam drogas, crianças supostamente apanhadas vendendo quantidades muito pequenas de maconha e atores fingindo ser outras pessoas. A exploração da pobreza pelo policial, seja real ou encenada, rende-lhe um lucro mensal de cerca de R$350 mil. Nada mal no país onde o salário mínimo é de R$1,1 mil por mês e onde a fome e a pobreza aumentaram devido à má gestão da pandemia de COVID-19 pelo governo.

Recentemente o delegado foi suspenso de suas funções e pode enfrentar um processo judicial. Mas a essa altura ele já reuniu milhões de seguidores, filiou-se a um partido político de direita e está pronto para se candidatar a uma vaga na Câmara dos Deputados em 2022. Quem se lembra da trajetória do capitão do Exército que foi expulso da força e pulou de partido de direita a outros de extrema direita até chegar à presidência tem motivos para acreditar que o militarismo e o punitivismo brasileiros geraram mais um monstro.