Por que acho que precisamos de ir além do termo “Redução de danos”

Fotografia via Pixabay

Caminho pelo parque, observando a multidão exultante de jovens festivaleiros. Um som gospel, dominado pelo órgão, toca em plano de fundo. É um som familiar. Não lhe consigo dar nome, mas também não consigo ignorar. Contudo, a minha atenção é desviada por um dos voluntários do The Loop. Entusiasmado, este gentil sujeito fala sobre os serviços de redução de danos que estavam a providenciar no festival. 

O seu robusto bigode e corte à escovinha evocava pensamentos de soldados confederados, bandeiras e monumentos, o conjunto completo. Para uma pessoa negra do Sul, esta não foi a melhor primeira impressão. Mas eu sabia que este era um problema meu, não dele, então esforcei-me para me concentrar em tudo menos no seu pêlo facial. 

Foquei-me na sua roupa, era casual – óculos bifocais de borda vermelha, uma camisola tingida e calções militares – o que parecia incongruente com o corte militar. Numa tentativa de retribuir a delicadeza e respeito que me mostrou, tentei ouvi-lo com mais atenção.

“Redução de danos” não captura a complexidade associada com amor, guerra e consumo de drogas. 

Mas, foi difícil porque o clássico de Al Green de, “Love and Hapiness”, fluía das colunas. “Something that can make you do wrong, make you do right” (algo que te faz fazer mal, faz-te fazer bem), Green cantava com um dose de mágoa misturada com o êxtase de um verdadeiro devoto. A maneira brilhante como tratou a  angústia e a alegria que podem resultar de estar apaixonado tocou-me como uma anfetamina. 

Assim, refleti sobre a ideia da Redução de Danos. Ideia que não captura a complexidade associada a atividades de adultos, como o amor, a guerra ou o consumo de drogas. Em vez disso, leva-nos a uma preocupação com os riscos e danos associados ao consumo de drogas. E a conexão entre os riscos e o consumo de drogas é reforçada repetidamente através do nosso discurso. Esta conexão, por sua vez, acaba por estreitar as nossas associações, conversas, sentimentos, memórias e percepções sobre drogas e sobre quem as consome. Talvez ainda pior, releva os consumidores para um status inferior. Certamente, apenas uma mente fraca se poderia envolver numa atividade que inflige danos, como o próprio termo indica. 

Naquele momento, ao ouvir o testemunho de AL Green, ao lado do meu anfitrião de bigode, tive certeza de que o termo redução de danos tinha que ser abdicado. Esgotou as boas-vindas. Precisávamos de um novo termo, uma nova linguagem; porque a linguagem que usamos molda a maneira como pensamos e nos comportamos. Precisamos de pensar sobre drogas e de nos comportar de uma maneira mais súbtil. É necessário deixarmo-nos de tretas e parar de fingir que as drogas inevitavelmente - e apenas - levam a resultados indesejados. 

Eu ponderei a questão sobre que termo ou frase que usaria como alternativa. Não fazia a mínima ideia. Mas sabia que a expressão utilizada deveria ser multifacetada. Teria de ser flexível o suficiente para abranger uma quantidade inumerável de efeitos possíveis, fossem eles bons, maus ou indiferentes. Também, como na música “Love and Happiness”, tinha de captar construções complexas e até conflituosas. 

“Saúde e Felicidade” veio-me à cabeça. 

“Saúde e Felicidade” veio-me à cabeça. Eu gostei. Soava a “Amor e Felicidade”, mas incluía a importante palavra “Saúde”, para que pudesse ser amplamente aplicada a outras atividades nas quais participamos. 

Por exemplo, viajar de carro apresenta potenciais riscos para a saúde de uma pessoa como também potenciais benefícios que tem impacto na sua felicidade. Usar o cinto de segurança, substituir os pneus para que não fiquem gastos, ter a certeza que os travões e pára-brisas funcionam adequadamente – tudo isto pode ser conceptualizado como estratégias de “saúde e felicidade”. Da mesma forma, reservar um período de sono de, pelo menos, 8 horas depois de um consumo pesado de estimulantes também é uma estratégia de “saúde e felicidade”.

Além disso, a frase saúde e felicidade lembrou-me dos ideais nobres expostos na nossa Declaração de Independência. Os signatários declararam, inequivocamente, que é o nosso direito inalienável a busca pela vida, pela liberdade e pela felicidade. A conclusão é esta: que milhões de americanos, incluindo eu, descobriram que certas drogas facilitam a nossa capacidade de atingir este objetivo, mesmo que apenas temporariamente. 

Eu reconheço que não tenho autoridade para cunhar uma frase para um campo abrangente, especialmente um que inclui muitos especialistas que têm feito esse trabalho muito antes de eu saber que o campo sequer existia. Esse não é o meu objetivo. Francamente, acho que não há necessidade de um termo específico para a redução de danos. Esse termo já existe: bom senso, prevenção, educação, e assim por diante. Não me importo muito com o termo usado, desde que não coloque o consumo de droga como uma categoria exclusivamente danosa, mas que reconheça as características positivas da experiência. 

 

Opiáceos: uma crise da recolha de dados e relatórios 

 

Infelizmente, simplesmente substituir o termo “redução de danos” não ajudará muito no combate aos títulos sensacionalistas dos media que, com frequência, deixam a impressão que a morte é o único resultado associado ao consumo de drogas. O encobrimento mediático guiado pelo pânico da chamada Crise dos Opiáceos é um grave exemplo - “Opiáceos responsáveis por dois terços das mortes relacionadas com drogas globais em 2017: ONU” é o título típico de um artigo sobre o tema. No mesmo, o autor conclui que os opiáceos eram “responsáveis ​​por dois terços de todas as mortes por drogas no mundo”. 

A sério? Eu duvido. Não estou a implicar que overdoses fatais não acontecem, porque acontecem. Nem estou a sugerir que nós, como sociedade, não nos deveríamos preocupar com tais casos, porque devíamos. A minha posição é que as provas para esta afirmação são fracas. Os eventos que levam a mortes relacionadas com drogas costumam ser muito mais ambíguos e complexos que o que os media nos fazem acreditar. 

Nos Estados Unidos, o Centro para Controlo da Doença e Prevenção (Centers for Disease Control and Prevention - CDC) recolhe informação sobre a mortalidade das certidões de óbito, que por si contêm as causas de morte. Estes certificados são preenchidos por milhares de pessoas diferentes pelo país. Cada Estado determina os seus próprios padrões e requerimentos para os indivíduos que conduzem investigações sobre as mortes. Por consequência, as pessoas que conduzem estas investigações variam no seu treino e experiência. Alguns são medical examiners e outros, coroners. Medical examiners são médicos com educação e treino especializado em patologia forense, enquanto os coroners não precisam de ter nenhuma educação médica (exceto em Arkansas, Kansas, Minnesota e Ohio).

Qualquer eleitor elegível pode tornar-se num coroner, independentemente do seu conhecimento – ou falta dele. 

Normalmente, os medical examiners são nomeados por um chief medical officer, os coroners são eleitos pelo público. Note-se que qualquer eleitor elegível se pode tornar um coroner, independentemente do seu conhecimento – ou falta dele – sobre questões relacionadas à investigação da morte. O que é ainda mais absurdo é que a maioria das regiões dos Estados Unidos depende dos coroners. Como consegue imaginar, estes padrões diferentes podem e produzem variações consideráveis na coleção e relato da informação sobre as mortalidades, incluindo overdoses de droga. 

Acrescentando a este gritante defeito sistémico, temos a variedade de circunstâncias das mortes provocadas por consumo de droga. Na maioria das situações, mais do que uma substância é encontrada no cadáver, e as concentrações dessas drogas geralmente não são determinadas.

Portanto, é difícil, se não impossível, de atribuir a morte a uma substância se não conseguirmos saber qual das substâncias, se alguma, atingiu um patamar que poderia ser fatal. Quando funcionários ou jornalistas afirmam que determinada substância foi causa da morte, deveríamos-nos perguntar sobre a sua concentração e se há presença de outras substâncias. 

 

Este artigo foi originalmente publicado por Filter, uma publicação online sobre o consumo de drogas, políticas de drogas e Direitos Humanos através de uma abordagem de Redução de Danos. Segue a Filter no Facebook or no Twitter, ou inscreve-te na Newsletter

Este artigo é um excerto de Drug Use for Grown-Ups: CHASING LIBERTY IN THE LAND OF FEAR de Dr. Carl L. Hart. Copyright @ Dr. Carl L. Hart, 2021. Publicado em acordo com a Penguin Press, membro da Penguin Random House LLC.

* Dr. Hart é o Professor Ziff de Psicologia nos Departamentos de Psicologia e Psiquiatria da Universidade de Columbia, e investigador do Instituto Psiquiátrico de Nova York. Publicou vários artigos científicos na área da neuro-psicofarmacologia e é coautor do livro Drugs, Society and Human Behavior (com Charles Ksir). O seu livro High Price foi o vencedor de 2014 do PEN / E.O. Prêmio Wilson de Redação em Ciência Literária.