Tendências Reveladoras do Mercado Russo de Drogas da Dark-Web

Fotografia aérea de Moscovo à noite de  Эдуард Ризванов retirada do Pixabay

O consumo de heroína tornou-se prevalente na Rússia, desde o final da década de noventa, com a abertura das fronteiras, tumultos sociais e miséria. Injeções feitas de forma insegura levaram a epidemias de hepatite C e de HIV que nunca realmente foram erradicadas. Estando, na altura, a internet a dar os seus primeiros passos, as drogas eram vendidas pessoalmente. Como um antigo consumidor de drogas, lembro-me da expectância dos meus amigos em arranjar um dealer fixo, para que pudessem pedir descontos – ou ajudar amigos a arranjar drogas em troca de uma parte da dose. 

Foi depois de 2010 que a popularidade dos mercados de drogas da dark-web começou a crescer na Rússia. O fornecimento de drogas ilegais começou a ser feito cada vez mais por via remota – mas não através do correio, à semelhança da América do Norte ou da Europa Ocidental, visto que o serviço de correios russo é gerido pelo Estado, e por isso fiscalizado de forma rigorosa. Pelo contrário, é feito com recurso a zakladki ou dead-drops. Doses de substâncias são escondidas para serem recolhidas pelos compradores - são colocadas em imanes em entradas de apartamentos, ou, por exemplo, enterrados em canteiros ou na floresta.

Até 2015, o mercado RAMP era o mercado mais utilizado, tendo a sua popularidade sido ultrapassada pelo aparecimento do Hydra. Após um curto período de coexistência, o RAMP foi encerrada e o Hydra começou a dominar.

Atualmente, o Hydra é uma das principais fontes de substâncias ilícitas, não apenas na Rússia, mas também noutros países ex-membros da URSS. Plataformas de mensagens instantâneas como a Telegram, VIPole e WhatsApp também têm ganhado popularidade. Em suma, a venda e compra de drogas em países da antiga URSS tornou-se praticamente digitalizada. 

O DrugStat Telegram channel tornou-se uma plataforma para o estudo e análise destes mercados e planeia lançar o seu website, DrugStat.org, brevemente. Tive a possibilidade de entrevistar a pessoa na liderança deste projeto, que mantem a sua anonimidade por razões compreensíveis. 

Como um trabalhador no campo da redução de danos, em São Petersburgo, entendo que a capacidade das pessoas em ter acesso a informação sobre o que vão consumir é capaz de as empoderar. Fiquei, por isso, curioso em descobrir quais as tendências que a minha fonte consegue identificar na dark web russa - que substâncias são presentemente mais populares e até que ponto é que considera estar em perigo por recolher referidos dados. A nossa entrevista foi ligeiramente editada por razões de comprimento e claridade. 

 

Aleksey Lakhoy: Que tendências consegue identificar na dark web russa?

 

Investigador do DrugStat: É óbvio que todos os anos, cada vez mais pessoas começam a utilizar a darknet para adquirir drogas, no contexto russo. Podemos chegar a essa conclusão, simplistamente com recurso a uma análise do feedback, ou dos comentários deixados após cada compra no Hydra. 

No início de 2016, o Hydra era um mercado pequeno direcionado para a venda de “sais de banho” e “especiarias”. Mas após a queda do RAMP, no Verão de 2017, em apenas uns meses [refletidos no primeiro aumento representado no gráfico do DrugStat, em baixo], o Hydra começou a monopolizar o mercado. De Janeiro de 2018 a Janeiro de 2020, a popularidade do Hydra, na Rússia, aumentou quase dez vezes. 

Com o aumento do Hydra, catinonas sintéticas, tais como a mefedrona e alfa PVP, tornaram-se extremamente populares na Rússia.

Desde a queda do RAMP até meados de 2019, observou-se durante quase todos os meses um crescimento estável do mercado do Hydra. Em Outubro de 2019, durante o pico deste crescimento – mesmo antes da região ter sido impactadas pela crise no seu mercado de haxixe e as dificuldades trazidas pelo COVID-19 – mais de dezasseis mil comentários foram deixados no Hydra após terem sido compradas drogas. Estes comentários representam apenas metade de todas as transações!

 

Gráfico interativo cortesia do DrugStat, disponível, aqui.

 

Com o crescimento do Hydra, as catinonas sintéticas, como a mefedrona e alfa-PVP, tornaram-se extremamente populares na Rússia. O RAMP focava-se mais em drogas orgânicas [com base em plantas, como a cannabis] e drogas sintéticas tradicionais, como é o caso da MDMA, cocaína e anfetamina. No caso do Hydra, o foco foi sempre colocado nos “sais de banho”. Acredito que este mercado está por detrás da epidemia de catinonas sintéticas que assolou o nosso país.  

Como exemplo do aumento da popularidade das catinonas, podemos olhar para Moscovo. Em 2018, o primeiro ano do monopólio do Hydra, as vendas totais de marijuana [resina e herbal] foram quase um ponto cinco vezes maiores do que as vendas de mefedrona e alpha-PVP. O narcótico mais vendido foi haxixe, o segundo foi a marijuana, o terceiro foi a mefedrona, tendo o alpha sido o sexto mais vendido. [No entanto] em 2019, as vendas cumulativas de marijuana foram apenas um ponto zero duas vezes maiores dos que as vendas de catinonas. A mefedrona tornou-.se o narcótico mais vendido, e o alpha-PVP subiu para o quarto lugar. Durante a primeira parte do 2020, as vendas de “sais de banho” tornaram-se um ponto dezasseis vezes mais altas do que as vendas de marijuana. Tal foi possibilitado pela crise sentida no mercado do haxixe [refletida na queda no Outono de 2019, presente no gráfico].

Assim, as duas principais tendências da dark web russo são o aumento da popularidade da dark web em si e o aumento da popularidade das catinonas sintéticas, em particular da mefedrona.

 

Poderia sumarizar algumas das suas conclusões mais interessantes, no sentido de saber que drogas estão a ser compradas e em que quantidades?

 

O estado da cena das drogas na Rússia é um reflexo do estado do Hydra. Se, por exemplo, uma das drogas mais populares desaparecesse de todas as localizações do Hydra, significa que todo o mercado desta droga estaria em risco em todo o país. 

Em Outubro de 2019, descobri que o haxixe desapareceu de forma abruta do Hydra. Os fornecedores não a tinham, e os seus preços eram incrivelmente altos. Para entender a razão dessa crise, explorei os dados obtidos do Hydra e falei com alguns insiders deste mercado.

Descobri que na base desta crise estava uma fraca colheita em Marrocos – o exportador chave de haxixe para a Europa e para a Rússia – bem como um número de apreensões em Gibraltar. Tal, em associação a uma reconfiguração simultânea das zonas de influência na fronteira da Rússia, levou a um défice enorme de haxixe. Tal afetou as rotas de drogas, o que resultou num aumento de haxixe oriundo do Afeganistão e de ice-o-lator [haxixe produzido através de um processo de produção especial, com um nível de THC mais elevado] vindo da Holanda. No final de 2019, escrevi um artigo sobre este tema. Mais tarde esta informação foi confirmada pelo relatório da OEDT e da Europol.

Em Abril-Maio, quase que não existiu marijuana no Hydra. Os fornecedores que ainda tinham acesso ao narcótico aumentaram os seus preços de forma dramática. Os preços continuam altos e não irão voltar ao seu estado inicial.

O mais interessante desta história está nas consequências desta crise. No segundo quartel de 2019, quando o mercado de haxixe se encontrava estável e forte, sessenta e cinco por cento das vendas cumulativas de marijuana em cidades russas com populações de mais de um milhão de habitantes correspondiam a haxixe, enquanto o correspondente aos botões era apenas de trina e cinco por cento. O impacto da crise sentiu-se no final de 2019, e no primeiro quartel de 2020 o haxixe perdeu vinte e três por cento do mercado da cannabis. Na altura, o haxixe detinha apenas quarenta e dois por cento do mercado, enquanto, os botões se tornaram o principal produto de cannabis com cinquenta e oito porcento.

O mercado de botões não estava pronto para este pico de procura e, no fim, enfrentou, também carências. Ao mesmo tempo, este mercado na sua totalidade começou a sentir as consequências do COVID-19, e, por isso, em Abril-Maio, quase que não existiu cannabis no Hydra, na Rússia. Fornecedores com acesso a cannabis aumentaram dramaticamente os seus preços, preços estes que continuam bastante altos, e não irão retornar ao seu estado prévio. Ao descobrirem que os consumidores de droga compravam a mercadoria, mesmo aos novos preços, os vendedores decidiram que não iriam perder dito lucro. 

Falando em COVID-19, escrevi um relatório enorme, a pedido de uma organização transnacional de drogas sobre as mudanças nas vendas de drogas pela internet na antiga URSS. A conclusão mais interessante desse relatório é relativa à influência do confinamento nas vendas. 

Verifiquei que a implementação de medidas associadas à quarentena, como o encerramento de escolas e universidades, a transferência em massa para o trabalho remoto, e o encerramento de negócios não diminuíram as vendas de dead-drops – até as aumentaram. As pessoas não precisam de ir para o trabalho, escola ou universidade e podem, por isso, passar mais tempo a consumir drogas. Foi esse o contexto, durante os primeiros dias de quarentena no Cazaquistão, na Ucrânia e na Moldávia. 

No entanto, caso um país introduza mais tarde um regime de isolamento, as vendas de dead drops diminuem drasticamente. As pessoas não podem sair e recolher os seus dead-drops, e os dead-droppers não podem esconder as suas mercadorias, atendendo ao forte policiamento das ruas. Tal criou uma queda acentuada no mercado.

A mefedrona é uma droga mais consumida por adolescentes e jovens. O Alpha-PVP, atendendo ao seu baixo preço, é mais popular nas regiões mais pobres do país. 

Mais tarde, as pessoas começaram a ajustar-se às novas condições, e as vendas aumentaram lentamente. Após o fim da quarentena, tudo voltou ao normal, como se verificou no Cazaquistão, Uzbequistão, Moldávia e em Moscovo, na Rússia. Como podemos ver no gráfico, as vendas em Moscovo começaram a decrescer em Abril de 2020, enquanto em São Petersburgo, ditas vendas quase não sofreram alterações durante a pandemia. Isto, pois o regime de confinamento imposto em Moscovo não foi aplicado em São Petersburgo.

 

Tem alguma perceção sobre quem está a comprar drogas desta forma? Em termos de região e demografia, por exemplo?

 

Julgo que este tipo de transações é feito por pessoas de todas as idades, géneros e nacionalidades. A heroína e a metadona são mais frequentemente compradas por antigos consumidores de opiáceos que podem estar na casa dos trinta, quarenta e cinquenta anos. A mefedrona, por seu lado é uma droga mais consumida por adolescentes e jovens com vinte, vinte e cinco ou trinta anos. O Alpha-PVP é mais popular nas regiões mais pobres do país (e em São Petersburgo) devido aos seus preços baixos. Outros narcóticos podem ser comprados em todo o lado por toda a gente.

 

E no que toca àqueles que vendem as drogas?

 

Quando falamos dos dead-droppers, as pessoas que escondem mercadoria nas ruas, já vi jovens assim como idosos a serem apanhados em flagrante pela polícia. Caso a única coisa que precises para começar a trabalhar e arranjar a substância ilícita para esconder seja fazer alguns cliques na internet, então qualquer pessoa o pode fazer.

Mães solteiras, pensionistas, estudantes, todos começam a trabalhar para o Hydra devido a problemas financeiros.

A verdadeira pergunta reside nas motivações destas pessoas. Mães solteiras, pensionistas, estudantes, todos começam a trabalhar para o Hydra por falta de dinheiro, um problema comum na Rússia. 

No que toca a vendedores de drogas ilícitas, a resposta é maioritariamente a mesma. A abertura de uma loja de drogas online não é muito mais difícil do que se tornar um dead-dropper, sendo apenas mais caro. As lojas podem ser abertas por qualquer pessoa, mas o seu sucesso depende e maneiras de negócio do dono.

 

O que é que pensa da segurança relativa que esta forma de comprar drogas pode oferecer, tanto no que diz respeito à criminalização e danos associados a drogas?

 

A situação crítica que se pode apresentar a um consumidor é ser apanhado pela polícia enquanto se recolhe um dead-drop. Tal não acontece com frequência. Por exemplo, durante um período anterior na minha vida, quando era um consumidor de drogas normal, recolhi mais de duzentos a trezentos dead-drops e nunca me cruzei com a polícia. Mas por vezes acontece, em casos de operações especiais ou devido ao desleixo do consumidor de drogas. 

Caso seja apanhado, pode conseguir escapar através de um suborno. O tamanho de um suborno e a vontade do polícia de o aceitar depende do volume das drogas que a pessoa traz assim como a aparência da pessoa em questão. Se tiver uma grande quantidade de dead-drops desembalados consigo, será, provavelmente, caracterizado como um dead-dropper, e o valor a pagar será, consequentemente, muito mais alto. No caso de ter apenas uma pequena quantidade de uma substância orgânica (posse de pequenas quantidades de algumas substâncias é na realidade descriminalizada, no contexto da Rússia), o suborno não terá de ser tão grande.

Devido ao sistema de dead-drop, existem várias pessoas que tentam encontrar doses escondidas reservadas para outras pessoas.

No que diz respeito aos danos associados a drogas, os problemas, no contexto russo, são bastante comuns. Por exemplo, a fraca qualidade das drogas sintéticas importadas, especialmente a anfetamina. Deram-se casos em que dead-droppers colocaram dead-drops com metadona em vez de mefedrona ou MDMA, o que causou mortes e hospitalizações. Devido ao sistema de dead-drop, existem mais pessoas que tentam encontrar mercadoria escondida, destinada a outros consumidores. Ditas pessoas podem suceder, encontrar um dead-drop com metadona, e consumi-la por via intranasal, julgando ser mefedrona. Deram-se alguns casos do género.

 

Fale um pouco do seu background pessoal, e a razão que despertou o seu interesse neste projeto. Enfrenta algum tipo de perigo legal por frequentar estes sites?

 

Dos quinze aos dezasseis anos fumei cannabis com os meus colegas de escola. Dos dezasseis aos dezoito anos, consumi todas as outras drogas graças ao sistema de dead-drop (o Hydra ainda não era tão popular na altura; o RAMP era). Era, basicamente, um consumidor de drogas normal. 

Com dezoito anos, comecei a pensar fazer dinheiro com drogas. Mas não queria estar em perigo por causa da minha atividade; queria fazer dinheiro da maneira mais legal possível. Por isso a ideia de conduzir uma investigação baseada em estatísticas surgiu-me e fiz um canal de Telegram. Em primeiro lugar, comecei a traduzir gráficos da OEDT e do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime. Depois comecei a recolher, analisar e a visualizar a informação, eu próprio. Deixei de consumir substâncias ilícitas e concentrei-me no trabalho.

Quero redirecionar o meu foco da Rússia para países onde o meu trabalho seria útil e poderia realmente mudar as coisas para melhor.

O meu trabalho é legal segundo as leis russas. Mas no nosso país as leis não importam assim tanto. Não estás em perigo desde que não fales sobre políticas ou tentes mudar alguma coisa no país. Decidi que, no futuro, quero focar o meu trabalho no mundo inteiro, não na Rússia em particular. Para o conseguir, acedi às regras implícitas do meu país e não discuto nada relacionado com políticas.

De qualquer forma, tomei todas as outras medidas necessárias para me sentir seguro. Não tenho nenhuma conta em sites de redes sociais. Não partilho o meu IP verdadeiro na internet, e não mostro a minha cara ou revelo o meu nome na minha atividade. Tanto o meu computador como o meu telemóvel estão encriptados. Nunca se sabe, por isso mais vale estar preparado. Num futuro próximo, como já referi, quero redirecionar o foco da minha atividade, da Rússia para países onde o meu trabalho pode ser útil e possa realmente mudar algo para melhor.

 

Este artigo foi originalmente publicado pela revista online, Filter, que reporta sobre consumo de drogas, políticas de drogas e direitos humanos pelas lentes da redução de danos. Siga a Filter no Facebook ou no Twitter, ou subscreva à sua newsletter.

* Aleksey Lakhov tem vindo a trabalhar no campo da redução de danos, e na prevenção da HIV e hepatite viral nos últimos dez anos. É o diretor-geral da coligação de ONGs de redução de danos “Outreach” (Estonia), e vice-diretor da Humanitarian Action (São Petersburgo). Escreveu sobre o consumo de drogas,e sobre hepatite e HIV para órgãos de comunicação russos, nos quais se incluem a RIA Novosti, a AIDS.CENTER e o TJournal. Está em recuperação a longo prazo do consumo de substância. Vive em São Petersburg.