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Tornar-se uma mulher usuária de crack: quebrando silêncios no Brasil

TalkingDrugs fez parceria com Luana Malheiro, antropólogo e pesquisador de drogas do Brasil, para trazer à tona suas percepções de sua extensa pesquisa com mulheres que vivem em situação de rua e usam crack no Brasil. É muito importante destacar esse trabalho à margem da sociedade, principalmente porque ele foi construído junto com essa população usuária de drogas.

Esta é a primeira parte das reflexões de Malheiro sobre seu trabalho, resumindo a tese do livro e como ela desenvolveu a pesquisa com seus colegas pesquisadores parceiros. A segunda parte pode ser lida SUA PARTICIPAÇÃO FAZ A DIFERENÇA.


A partir de cerca de 2000, o debate sobre a política de drogas no Brasil foi marcado pelas forças midiáticas dominantes anunciando a chegada do crack, o grande mal. O construção social e midiática do pânico moral em torno do consumo de crack fazia parte de um esforço global mais amplo para intensificar a perseguição pública às pessoas que usavam crack em espaços ao ar livre em cidades grandes e centros urbanos. Embora houvesse uma mudança cultural e política em curso na América Latina e no Caribe em torno da aceitação de uso de cannabis, o modelo proibicionista da guerra às drogas voltou a se concentrar em um novo inimigo em nossa região: as pessoas que fumavam cocaína, principalmente as negras ou pobres.

O discurso usado para construir a imagem dos consumidores de crack demonizou ativamente essas populações: os viciados em crack, zumbis, corpos sem alma ou bebês de crack. Todos reforçam práticas discriminatórias e estigmatizantes na sociedade. Nas políticas públicas, esse discurso criou uma abordagem repressiva e proibicionista das drogas, acionando práticas de controle baseadas na saúde e impactando o direito de acesso das pessoas à cidade.

Um conjunto de novas políticas de controle de corpos começou a surgir no Brasil, com a suposta finalidade de “conter uma epidemia de crack” que nunca foi corroborada por nenhuma evidência epidemiológica. O governo brasileiro deu início a uma série de iniciativas, denominadas “Crack: você pode vencê-lo”, a fim de conter o alvoroço público e da mídia em torno da droga. Essas políticas obviamente não visavam a todos que consumiam crack: o problema específico era aquele grupo de pessoas que viviam na rua, ou aqueles que faziam parte de comunidades mais pobres que costumavam usar crack em espaços públicos abertos.

O livro "Tornar-se mulher usuária de crack: cultura e política de drogas”, publicado em 2020 por Editora Telha, narra essa complexa trama, valendo-se de vozes que nunca são realmente levadas a sério em nenhum debate nacional e regional: as mulheres em situação de rua e usuárias de crack. O livro traz fatos históricos, como uma análise do contexto político global e local que situa os usuários de crack como alvos históricos de uma perseguição proibicionista; revela discussões sobre questões locais e globais nas histórias contadas por essas mulheres, que são parceiras de pesquisa da autora.

“Parceiro” é um conceito utilizado pelas mulheres para se referir a pessoas de confiança que estiveram presentes em momentos importantes de suas vidas. O objetivo do livro era emular essa confiabilidade, fornecendo um espaço para entender as histórias daqueles mais afetados pela proibição, racismo, sexismo e desigualdade econômica, principalmente enquanto eles viviam o pânico moral em torno do crack.

O livro é uma teia de histórias que começa com as histórias pessoais do autor. Descreve experiências vividas como mulher usuária de drogas, centrando sua pesquisa em torno dessas identidades. Em um mundo proibicionista, colonialista e machista, silenciar mulheres usuárias de drogas é uma técnica de manutenção do poder que lhes tira a chance de participar da crítica às políticas de drogas que as impactam. A experiência do uso de drogas também é uma força produtora de conhecimento, desenvolvendo uma cultura de uso que reúne entendimentos políticos e sociais das drogas, bem como experiências pessoais em um processo iterativo desenvolvido ao longo do tempo. A importância de quebrar pactos de silêncio em parceria com a população estudada e estabelecer sistemas de troca de saberes é central para o livro.

Tornar-se uma mulher que usa crack

“Eu estava sendo ameaçada pelo meu marido. Eu ficava com ele na Praça dos Correios ([praça pública], ele, a filha dele e eu. Morávamos na rua e eu tinha medo dele, então fui para o delegacia de mulher [delegacias especializadas em crimes contra a mulher]. Eu não sabia como funcionava, então no mesmo dia ele me ameaçou, juntei uma grana, deixei a menina com um camarada e fui fazer a denúncia. Fui tratado terrivelmente. Eu queria falar sobre como fui ameaçada, e o policial estava me perguntando se eu fumava crack, se tinha filhos, que não deveria andar em áreas ruins. Perguntei a ela quase chorando, precisava sair da rua e ir para algum lugar. Ela me disse que tem um abrigo, mas eu não podia ir porque era morador de rua e usava drogas, o que não era permitido lá. Saí da estação cheia de ódio, ela não era uma mulher? Sou menos que uma mulher? Eu não sou uma mulher?” – Janete

 

O livro foi o culminar de muitos anos de convívio entre a autora e mulheres em situação de rua usuárias de crack em um bairro urbano da cidade de Salvador na Bahia. O processo de pesquisa envolveu várias entrevistas, visitando locais abertos de uso de drogas, serviços de saúde, prédios da justiça de 2015 a 2016. A autora trabalhou com um coletivo de 20 mulheres, realizando entrevistas individuais e em grupo para entender o caminho que levou as mulheres ao uso e o uso problemático de crack. Como as mulheres se tornaram consumidoras de crack? Essa foi uma das questões que nortearam as reconstruções da vida dessas mulheres, por meio das quais essas entrevistas e histórias trazem uma luz sobre o processo.

O título do livro faz alusão a um clássico de Simone de Beauvoir, que questiona o ideal de mulher que representa o feminismo branco atual, e cuja voz e narrativa impulsionaram a formulação de políticas públicas contemporâneas para as mulheres. O feminismo negro, surgindo no contexto internacional para desafiar a construção ocidental de Beauvoir, criou as bases para pensar a luta das mulheres negras, indígenas e não brancas.

É assim que a citação de Janete se encaixa na história mais ampla. Não se espera, nem se deseja, que uma mulher que mora na rua e usa crack participe da formulação de políticas femininas; ela é deixada para se defender sozinha.

O caminho que leva as mulheres ao uso mais problemático do crack é marcado por experiências traumáticas. As histórias contadas por meus parceiros de pesquisa revelam que, quando você caminha rumo à morte, o uso do crack é uma expressão da vida, mantendo-o vivo enquanto lida com os traumas. A busca pelo crack foi uma forma de apagar uma memória profunda de dor.

As violências institucional, racial e de gênero eram comuns na vida dessas mulheres. Das 20 mulheres com quem trabalhei, 18 foram vítimas de abuso sexual por familiares próximos; esse era frequentemente o principal motivo pelo qual muitos deles viviam nas ruas. Uma vez desabrigados, há um aprendizado muitas vezes doloroso pelo qual todos eles passam: você deve aprender a se proteger dos vários tipos de violência que o cercam.

Histórias de estupro, por policiais, forças de segurança privada, traficantes de drogas e outras pessoas que usam drogas na rua, revelam uma realidade nefasta do que só pode ser descrito como uma epidemia de estupro, que deteriora ainda mais o bem-estar psicológico dessas mulheres. Outras situações que levaram ao uso compulsivo de crack foram: violência física; a remoção ou sequestro de recém-nascidos; ou o assassinato de crianças sancionado pelo estado, geralmente pela polícia. O crack tornou-se seu suporte, para suportar todas as adversidades enfrentadas em suas vidas.

“Eles só precisam saber que você usa crack e mora na rua para eles levarem seu filho. Há tantos desses casos. As mulheres vão para a maternidade para ter os filhos e depois os trabalhadores levam ai. Eles não querem nos apoiar, nem perguntam se você quer ficar com eles. Depois que levaram meu primeiro filho, fiquei louco. Quando engravidei, comecei a me cuidar melhor, e queria muito sair dessa vida... Mas quando levaram meu filho, eu bati no fundo mesmo. Eu não queria ficar sã nem por um minuto, e ter que lembrar que eles o tiraram de mim. Você só precisa falar com as outras mulheres na rua e ouvirá a mesma história. Quem pode suportar essa dor sem quebrar? Sem realmente se jogar no crack?”

No livro, há uma reflexão sobre os feminicídios cometidos em nome da guerra às drogas. As formas como as mulheres morrem física e subjetivamente são diversas: a atual Guerra às Drogas se manifesta como uma força apaziguadora, silenciando os sons das mulheres negras, indígenas, não brancas, trans, imigrantes que usam drogas.

“Meu filho não tinha nem 20 anos. Ele foi meu maior parceiro na vida, era só eu e ele. Até que ele se envolveu com o pessoal daqui; não tínhamos dinheiro, então ele começou a vender crack para conseguir uma vida melhor. Conseguimos um quarto simples para nós, e nossa vida foi mudando. A imagem de seu corpo caído no chão, coberto de sangue, está gravada em minha cabeça. Ele foi baleado nas costas. Como isso é justo? Ele deveria ter sido preso, e então ele estaria fora. Essa imagem me destrói. Só paro de pensar nisso quando fumo crack, me traz um certo alívio. Já se passaram cinco anos, mas ainda parece que foi ontem, ainda choro todos os dias. Eles me mataram quando mataram meu filho. O que me mantém vivo é a pedra [crack]. Acho que nunca vou conseguir parar de fumar. Só penso em vingar a morte dele…”


O livro "Tornar-se mulher usuária de crack: cultura e política de drogas”, está disponível em Editora Telhasite da

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